"Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta. "
(Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto)
O moderno Airbus 319, deslizava no céu de brigadeiro, pilotado por um quase brigadeiro, oficial general da força aérea. A máquina, nova ainda, cheirava a couro e aquele característico cheiro de ar condicionado de avião, onde se mistura o cheiro do couro ao cheiro de plástico, borracha e tudo mais que se suga e recircula a bordo de um avião. A rota passava, desde Paramaribo, no Suriname, ex-colônia holandesa, a oeste de Belém, indo em direção a Brasília. O passageiro mais ilustre a bordo, levantou-se de sua confortável poltrona de couro, onde largara o corpo cansado logo a subir a bordo, pouco mais de uma hora atrás.
Começou a explorar melhor aquele brinquedo caro, cheio de luxos que o incomodavam, embora tantos insistissem em dizer da simplicidade da decoração. Abriu o armário, mais interessado no fecho prateado, acionado como uma alavanca, que no conteúdo que acharia ali dentro.
Era uma pequena biblioteca, de autores nacionais, que alguém se ocupara de deixar a bordo para a distração dos passageiros.
Apesar do sucesso da viagem, pesava no ar um pouco viciado agora já enjoativo de coisa nova, um silêncio respeitoso.
Há pouco o coronel comandante anunciara no sistema de som que já estavam sobre território brasileiro, e a tela de cristal líquido ligada ao sistema de navegação do avião mostrava o mapa do Brasil, destacado naquele momento com o estado do Pará e sua capital, Belém, à direita do tracejado da rota até Brasília.
O passageiro ilustre pegou um livro, que ao acaso era de João Cabral de Melo Neto, e ao acaso maior ainda, trazia o Auto de Natal Pernambucano, sub-título da obra Morte e Vida Severina.
Folheando o texto, deparara com a letra musicada por Chico Buarque de Hollanda:
" Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
é de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
neste latifúndio.
Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
é uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo."
Sentara de volta na poltrona, folheando o livro enqüanto pensava nas notícias que rondaram o tempo da viagem, de Brasília a Caracas, de Caracas a Georgetown, dali a Paramaribo, e agora, na volta antecipada em alguma horas para fugir das pressões sobre a morte da freira na terra sem lei do Pará, logo no início da viagem.
Agora, havia aquele severino incômodo, achado em meio aos livros de bordo, tirado em meio a tantos livros, aquele livro severino, mais um severino. E a freira, não era uma severina. A tinta do sangue dela era americana do norte, não era aquela tinta vermelha apagada dos sangues sertanejos, esfaimados e ignorantes, retirantes e sem-terras.
Era um sangue com cores que apareciam em TV´s, jornais e revistas, denunciando a covardia do capital explorador das madeiras que manda nas terras sem lei, próximas das Terras do Meio, próximas das terras de ninguém. Das matas tropicais e florestas amazônicas, do objeto dos créditos verdes a serem negociados nas bolsas do mundo, dando o ar ao mundo que explora o ar dos que virão a ser, cada vez mais, levados às covas rasas, nem largas nem fundas.
Voltou a ler o título do livro, "Morte e Vida Severina", fechou-o. Largou-o sobre a poltrona.
Dirigiu-se ao quarto de seu uso exclusivo na aeronave, com cama de casal e lençóis de fios de fibra longas, 300 por polegada, de algodão egípcio. Acionou o comando da persiana, e a luz do dia invadiu o aposento. Olhou o infinito céu azul, sobre o infinito horizonte de florestas verdes e rios dourados.
Pensou, num relâmpago, que se tudo explodisse agora, e o vice estivesse também a bordo, sob aquele céu e sobre aquelas matas, reinaria um Severino, a partir de então.
Mas não um severino do auto de natal pernambucano, embora fosse um Severino pernambucano. Deputado. Presidente.
Deixou o corpo exausto cair sobre o colchão macio, nem largo, nem fundo...
O Brasil não precisava daquilo, não mais. Nos mais de 5 séculos, começando no tempo em que o pau vermelho era cortado para tingir tecidos na Europa, o vermelho vinha tingindo a história do país. Agora, entre mais de 5 centenas de deputados, um severino aviso vinha, e embora a derrota na Câmara nada tivesse com a morte da freira, o sangue dela tingia a imagem que ele achava que era possível de grande estadista, e o vermelho da bandeira do partido esmaecera ante um retirante deputado emergente, de cabeça grande, ventre crescido e pernas finas, que quer até lhe dar mais um ano, além dos quatro, de mandato.
O "5" era um número cabalístico para ele, pensou. Não pôde deixar de erguer o braço esquerdo e olhar a mão de 4 dedos...
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta. "
(Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto)
O moderno Airbus 319, deslizava no céu de brigadeiro, pilotado por um quase brigadeiro, oficial general da força aérea. A máquina, nova ainda, cheirava a couro e aquele característico cheiro de ar condicionado de avião, onde se mistura o cheiro do couro ao cheiro de plástico, borracha e tudo mais que se suga e recircula a bordo de um avião. A rota passava, desde Paramaribo, no Suriname, ex-colônia holandesa, a oeste de Belém, indo em direção a Brasília. O passageiro mais ilustre a bordo, levantou-se de sua confortável poltrona de couro, onde largara o corpo cansado logo a subir a bordo, pouco mais de uma hora atrás.
Começou a explorar melhor aquele brinquedo caro, cheio de luxos que o incomodavam, embora tantos insistissem em dizer da simplicidade da decoração. Abriu o armário, mais interessado no fecho prateado, acionado como uma alavanca, que no conteúdo que acharia ali dentro.
Era uma pequena biblioteca, de autores nacionais, que alguém se ocupara de deixar a bordo para a distração dos passageiros.
Apesar do sucesso da viagem, pesava no ar um pouco viciado agora já enjoativo de coisa nova, um silêncio respeitoso.
Há pouco o coronel comandante anunciara no sistema de som que já estavam sobre território brasileiro, e a tela de cristal líquido ligada ao sistema de navegação do avião mostrava o mapa do Brasil, destacado naquele momento com o estado do Pará e sua capital, Belém, à direita do tracejado da rota até Brasília.
O passageiro ilustre pegou um livro, que ao acaso era de João Cabral de Melo Neto, e ao acaso maior ainda, trazia o Auto de Natal Pernambucano, sub-título da obra Morte e Vida Severina.
Folheando o texto, deparara com a letra musicada por Chico Buarque de Hollanda:
" Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
é de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
neste latifúndio.
Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
é uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo."
Sentara de volta na poltrona, folheando o livro enqüanto pensava nas notícias que rondaram o tempo da viagem, de Brasília a Caracas, de Caracas a Georgetown, dali a Paramaribo, e agora, na volta antecipada em alguma horas para fugir das pressões sobre a morte da freira na terra sem lei do Pará, logo no início da viagem.
Agora, havia aquele severino incômodo, achado em meio aos livros de bordo, tirado em meio a tantos livros, aquele livro severino, mais um severino. E a freira, não era uma severina. A tinta do sangue dela era americana do norte, não era aquela tinta vermelha apagada dos sangues sertanejos, esfaimados e ignorantes, retirantes e sem-terras.
Era um sangue com cores que apareciam em TV´s, jornais e revistas, denunciando a covardia do capital explorador das madeiras que manda nas terras sem lei, próximas das Terras do Meio, próximas das terras de ninguém. Das matas tropicais e florestas amazônicas, do objeto dos créditos verdes a serem negociados nas bolsas do mundo, dando o ar ao mundo que explora o ar dos que virão a ser, cada vez mais, levados às covas rasas, nem largas nem fundas.
Voltou a ler o título do livro, "Morte e Vida Severina", fechou-o. Largou-o sobre a poltrona.
Dirigiu-se ao quarto de seu uso exclusivo na aeronave, com cama de casal e lençóis de fios de fibra longas, 300 por polegada, de algodão egípcio. Acionou o comando da persiana, e a luz do dia invadiu o aposento. Olhou o infinito céu azul, sobre o infinito horizonte de florestas verdes e rios dourados.
Pensou, num relâmpago, que se tudo explodisse agora, e o vice estivesse também a bordo, sob aquele céu e sobre aquelas matas, reinaria um Severino, a partir de então.
Mas não um severino do auto de natal pernambucano, embora fosse um Severino pernambucano. Deputado. Presidente.
Deixou o corpo exausto cair sobre o colchão macio, nem largo, nem fundo...
O Brasil não precisava daquilo, não mais. Nos mais de 5 séculos, começando no tempo em que o pau vermelho era cortado para tingir tecidos na Europa, o vermelho vinha tingindo a história do país. Agora, entre mais de 5 centenas de deputados, um severino aviso vinha, e embora a derrota na Câmara nada tivesse com a morte da freira, o sangue dela tingia a imagem que ele achava que era possível de grande estadista, e o vermelho da bandeira do partido esmaecera ante um retirante deputado emergente, de cabeça grande, ventre crescido e pernas finas, que quer até lhe dar mais um ano, além dos quatro, de mandato.
O "5" era um número cabalístico para ele, pensou. Não pôde deixar de erguer o braço esquerdo e olhar a mão de 4 dedos...
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