quinta-feira, fevereiro 24, 2005

Morte e Vida Severina

"Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta. "
(Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto)


O moderno Airbus 319, deslizava no céu de brigadeiro, pilotado por um quase brigadeiro, oficial general da força aérea. A máquina, nova ainda, cheirava a couro e aquele característico cheiro de ar condicionado de avião, onde se mistura o cheiro do couro ao cheiro de plástico, borracha e tudo mais que se suga e recircula a bordo de um avião. A rota passava, desde Paramaribo, no Suriname, ex-colônia holandesa, a oeste de Belém, indo em direção a Brasília. O passageiro mais ilustre a bordo, levantou-se de sua confortável poltrona de couro, onde largara o corpo cansado logo a subir a bordo, pouco mais de uma hora atrás.
Começou a explorar melhor aquele brinquedo caro, cheio de luxos que o incomodavam, embora tantos insistissem em dizer da simplicidade da decoração. Abriu o armário, mais interessado no fecho prateado, acionado como uma alavanca, que no conteúdo que acharia ali dentro.
Era uma pequena biblioteca, de autores nacionais, que alguém se ocupara de deixar a bordo para a distração dos passageiros.
Apesar do sucesso da viagem, pesava no ar um pouco viciado agora já enjoativo de coisa nova, um silêncio respeitoso.
Há pouco o coronel comandante anunciara no sistema de som que já estavam sobre território brasileiro, e a tela de cristal líquido ligada ao sistema de navegação do avião mostrava o mapa do Brasil, destacado naquele momento com o estado do Pará e sua capital, Belém, à direita do tracejado da rota até Brasília.
O passageiro ilustre pegou um livro, que ao acaso era de João Cabral de Melo Neto, e ao acaso maior ainda, trazia o Auto de Natal Pernambucano, sub-título da obra Morte e Vida Severina.
Folheando o texto, deparara com a letra musicada por Chico Buarque de Hollanda:


" Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.

é de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
neste latifúndio.

Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.

é uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo."


Sentara de volta na poltrona, folheando o livro enqüanto pensava nas notícias que rondaram o tempo da viagem, de Brasília a Caracas, de Caracas a Georgetown, dali a Paramaribo, e agora, na volta antecipada em alguma horas para fugir das pressões sobre a morte da freira na terra sem lei do Pará, logo no início da viagem.
Agora, havia aquele severino incômodo, achado em meio aos livros de bordo, tirado em meio a tantos livros, aquele livro severino, mais um severino. E a freira, não era uma severina. A tinta do sangue dela era americana do norte, não era aquela tinta vermelha apagada dos sangues sertanejos, esfaimados e ignorantes, retirantes e sem-terras.
Era um sangue com cores que apareciam em TV´s, jornais e revistas, denunciando a covardia do capital explorador das madeiras que manda nas terras sem lei, próximas das Terras do Meio, próximas das terras de ninguém. Das matas tropicais e florestas amazônicas, do objeto dos créditos verdes a serem negociados nas bolsas do mundo, dando o ar ao mundo que explora o ar dos que virão a ser, cada vez mais, levados às covas rasas, nem largas nem fundas.
Voltou a ler o título do livro, "Morte e Vida Severina", fechou-o. Largou-o sobre a poltrona.
Dirigiu-se ao quarto de seu uso exclusivo na aeronave, com cama de casal e lençóis de fios de fibra longas, 300 por polegada, de algodão egípcio. Acionou o comando da persiana, e a luz do dia invadiu o aposento. Olhou o infinito céu azul, sobre o infinito horizonte de florestas verdes e rios dourados.
Pensou, num relâmpago, que se tudo explodisse agora, e o vice estivesse também a bordo, sob aquele céu e sobre aquelas matas, reinaria um Severino, a partir de então.
Mas não um severino do auto de natal pernambucano, embora fosse um Severino pernambucano. Deputado. Presidente.
Deixou o corpo exausto cair sobre o colchão macio, nem largo, nem fundo...
O Brasil não precisava daquilo, não mais. Nos mais de 5 séculos, começando no tempo em que o pau vermelho era cortado para tingir tecidos na Europa, o vermelho vinha tingindo a história do país. Agora, entre mais de 5 centenas de deputados, um severino aviso vinha, e embora a derrota na Câmara nada tivesse com a morte da freira, o sangue dela tingia a imagem que ele achava que era possível de grande estadista, e o vermelho da bandeira do partido esmaecera ante um retirante deputado emergente, de cabeça grande, ventre crescido e pernas finas, que quer até lhe dar mais um ano, além dos quatro, de mandato.
O "5" era um número cabalístico para ele, pensou. Não pôde deixar de erguer o braço esquerdo e olhar a mão de 4 dedos...

O Primeiro Soutien

Enormes afazeres pertinentes à convivência com a feminilidade, têm me ocupado ultimamente, por razões diversas. Embora isso ocupe às mulheres 100% do seu tempo, qüando acumulam a função de mães, aos homens ocupa apenas 50% do tempo que podem, mas nem sempre querem, se ocupar de coisas do sexo oposto. Não que diga de filhos ou filhas, mas de homens e mulheres, cuecas e soutiens, e até mesmo uns que usam cuecas que querem usar sutian, mais coloquial (q q issu mlk!!! diriam os adolescentes... para traduzir "o quê que é isso, maluco!" e evitar menos cansaço digital), e, "à vera", ou veracidade, acontece o vice-versa (tá, da menina que quer usar cuecas...!).
Daí, numa viagem dessas, lendo uma fraquinha entrevista na Caros Amigos com um dos papas da comunicação brasileira, Washington Olivetto, me lembrei daquela propaganda, citada na entrevista, a do primeiro soutien, com uma cena de uma menina colocando seu primeiro soutien.
Inesquecível.
E de soutiens, sinapses mentais me levaram à pré adolescência,
como eu chamaria a coisa infantil do primeiro amor.
E não que a publicidade falasse ou insinuasse (?) sobre tal, o amor.
Era de soutiens, claro.
Afinal, qüantos soutiens compra uma mulher ao longo da vida?
As "consumidoras" mulheres que são contemporâneas dessa propaganda
- e conhecendo o lado feminino -, digo que até as adolescentes atuais a conhecem,
que ela é sempre referência de publicidade esteticamente adaptada ao tempo, já que hoje,
como há 20 anos atrás,
a revolução feminina começa bem mais cedo que começou
com as "mocinhas" de 20 e tantos, 30,
para não falar de mais de 30 anos atrás.

Em saltos assim, a mulher moderna se definiu, segundo dizem tantas coisas por ai, prá não citar que tudo diz isso... Mas isso ainda, o que tem a ver com o amor? Um amor da mulher por ela mesma, pela evolução do seu corpo, pelo que se espera que vai acontecer.
A vida, a criação. A reprodução. O tempo que define não o tempo de reproduzir, que pode acontecer antes, mas o tempo que define sua capacidade de sustentar a reprodução. Sei até do caso de um irmão quê, rejeitado até a idade adulta pela irmã mais velha, ... não.
Isso, merece outras estórias...
Voltando ao soutien, me perco no sentido do que me despertou tudo isso.
E então, muito antes que as meninas começam a pensar em amor, os meninos,
pobres coitados,
nunca tiveram uma propaganda que mostrasse-os manchando
com uma gosma branca,
sua primeira cueca.
Isso, a publicidade ainda não fez, mas falávamos de qüantos anos, mesmo???
Ah, muito tempo.
Tempo demais que ainda não saiu da fórmula de Mulher-Sexo-Cerveja.
É que ainda não se aprendeu a falar "a primeira punheta a gente nunca esquece".

Fim de Férias

É engraçado o que acontece com a imprensa ao final das férias: as notícias mudam, com o ar revigorado pelas praias e fazendas, aos jornalistas mineiros... Elas, as notícias, perdem o tom desesperado, tsunâmico (até meu, pessoal mesmo, esse tom...), e se armam mais, para mostrar um pouco além da tragédia em si. "Uma ponte cai na Régis Bittencourt, a rodovia da morte." "Apesar de perder renda, aumentamos o número de empregos formais." Dá para se imaginar, meio-dia dessa quarta feira, a ouvir os jornais da noite.
Há uma mágica interessante nas relações das pessoas: também os jornalistas, muitos deles formadores de opinião, têm mais convívio social nessa época, e desarmam muitos preconceitos com a mente fresca pela brisa do mar, o ar fresco da montanha, ou do ar-condicionado dos shoppings e salas de cinema, e vertem otimismo ou mais argúcia. Ou seriam os redatores interinos das centenas de colunistas sociais em tantos canais e jornais?
Janeiro já se finda, e as notícias precisam acontecer.
E tanto tempo mudado, tantos dias corridos, mais um ano precisa ser feito no calendário do futuro.
Fóruns, discussões, frio no norte, calor no sul, notícias que dizem que a Terra qüase se extingüiu há bilhões de anos, e nós aqui... repetindo de novo tudo do ano passado?
"- Fulano, esse ano vai ser diferente...!"
"- Cicrano, é o seguinte: nós e a Terra, somos do mesmo material. Se ela qüase se matou em convulsões, diarréias, febre e síncopes, ainda assim ela tá ai. Agora, senta e escreve essa merda de estória sobre o cara que mordeu o cachorro prá pegar o bife de filé que ele ia fazer para a namorada. Omite sobre a parte do cara que o cachorro em represália atacou.."
No fundo da redação, passa alguém cantarolando...
Sentou ao computador, e começou a digitar tudo que tinha em mente. No dia seguinte, a nota:
"Preço do filé deixa consumidor incapacitado".