domingo, outubro 08, 2006

Bala Perdida


Ainda fresca na memória, a tragédia do vôo 1907 alimenta uma seqüência enorme de acidentes aéreos, passando, com cores novas (graças a um livro de Ivan Sant'Anna, "Plano de Ataque") pelos atentados de 2001 no World Trade Center em Nova Iorque.
Tão longe vai a viagem aérea que arrisco a imaginar um mundo em que não vivi, onde, há 100 anos um franzino brasileiro, sonha em voar nos céus de Paris.
Meu mundo, talvez graças a Alberto Santos=Dumont, sempre tem aviões a riscar os céus. Encantaram-me os jatos comerciais que nasceram junto comigo, alguns deles, como eu, ainda voando. Encantava-me imaginar, então, o mundo de Júlio Verne, como encantou ao próprio Alberto, dizem. E ele era verdadeiro, então, na minha consciência, que entendia mais de aerodinâmica que pudera Alberto jamais imaginar, nem mesmo Verne, o Jules. Longe de mim dizer de Leonardo, que encapsulara uma bolha de conhecimento humano, e abrigava, além das máquinas, arte, sensibilidade estética, arquitetura, materiais, obstinação - comum a todos -, e criatividade, também auxiliada, em todos eles, da capacidade do conhecimento humano aplicada às possibilidades, ainda que imponderáveis, então.
Em tempos de menos notícias, que não época de eleições bastante preocupantes, talvez minha viagem passasse pelas almas dos 154 (embora tenham sido rezadas muitas preces para um passageiro que nunca existiu à bordo do vôo 1907, chamado de "um cinco cinco") mortos do acidente, mas busco consolo no pensamento de que elas, exceto talvez os pilotos do 737, jamais souberam que morreriam ali. Em segundos, ou frações dele, o brusco movimento a mais de 800km/h "simulou" uma força tal que paralisou nas artérias todo o sangue de todos, fazendo-os desfalecer, e talvez, até aos pilotos. Uma fração de segundo, e 154 almas a bordo, e milhares de outras, ou milhões, em terras, mares e ares, cristalizaram um momento que perdurará, enfim, por muito tempo...

Tivesse Santos=Dumont refletido, antes de dar cabo à vida, que os homens nem sempre podem se arrepender de seus erros! Ou não reconhecem nossa fragilidade dissimulada pela inegável inteligência da raça humana: àquela velocidade, em meio segundo, que corresponde ao tempo que o 737 percorreu mais de 100 metros, ou mais de um quarteirão (em meio segundo), num "céu de brigadeiro" com um mar verde atapetando a paisagem clara, em velocidade de cruzeiro, não havia ser humano capaz de resistir ao fatal solavanco de milhares de quilos de metal chocando-se em velocidade superior ao próprio som do impacto que nem chegaram a ouvir, aquelas almas. Aquele impacto transformou uma máquina de milhões num projétil, uma bala (tão veloz quanto uma), um pedaço desgovernado de metal cheio de viajantes já mortos.
Tivesse Santos=Dumont refletido, não nos cabe a culpa de sermos humanos.
Mais nos caberia, a ignorância da verdadeira massa ignara que somos.

8-X-2006

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