terça-feira, dezembro 16, 2003

Esse � de um amigo...

Pontos corridos

Trabalhando h� anos como professor, em Belo Horizonte, no Col�gio Loyola, onde permane�o, e no Col�gio Santo Ant�nio, de onde sa� recentemente, tive o privil�gio de receber na minha forma��o espiritual influ�ncias tanto inacianas, como do Pe. Adroaldo, quanto franciscanas, em especial do inesquec�vel Frei Hil�rio. Para completar trazia comigo uma riqueza imensa proporcionada por um padre secular, o Pe. Candinho, da minha par�quia, que ensinou-me a fazer uma s�ntese dessas sabedorias que �minam� no dia a dia.
Uma delas ouvi de um outro mestre muito querido, o Pe. Lib�nio, que disse uma frase que me fez pensar: �O crist�o � uma pessoa absolutamente igual a todo mundo, mas que v� as coisas de um modo diferente...�
O sempre franciscano, Leonardo Boff, chama isso de �olhar sacramental�. Santo In�cio dizia que trata-se de �sentir e saborear as coisas internamente� No fundo, apontam na mesma dire��o. O crist�o � convidado permanentemente a perceber �o mist�rio que mora nas coisas e pessoas�.
O momento presente � prop�cio a esse exerc�cio. O in�cio de um novo ano sup�e que outro se acabou. � preciso, portanto, recolher para acolher. O que vivemos, as experi�ncias vividas, recolhidas, ir�o alimentar o tempo novo desde que sejamos capazes de saborear o gosto dos mist�rios revelados no cotidiano.
Eu sou crist�o. Logo sou igual a todo mundo. Mas diferente. A come�ar porque sou �nico. Podem me clonar e o clone, solto na vida, vai dar uma pessoa diferente. E o diferente come�a por esse modo de olhar as coisas.
Sendo brasileiro, sou igual aos outros tamb�m numa paix�o: o futebol. J� joguei (e bem), gosto de assistir, torcer, participar das discuss�es que mudam de rumo de acordo com a safra. Sucessos e fracassos oscilam de lado e fazem a alegria de uns, de outros e de todos. Nos �ltimos tempos tenho tido um motivo a mais para gostar de futebol: sou cruzeirense. Meu time ganhou quase tudo no ano que passou, inclusive o t�o sonhado t�tulo brasileiro. Pois foi justamente essa conquista futebol�stica que me convidou a �um olhar diferente...�
A grande novidade no futebol brasileiro em 2003 foi a f�rmula de disputa do campeonato. Pela primeira vez usou-se o sistema de pontos corridos. Se voc� n�o sabe, eu explico. Os times todos jogam uns contra os outros, um jogo na sua cidade, outro na do advers�rio e v�o somando os pontos. Ao final, quem acumular mais sucessos, e portanto mais pontos, ser� o campe�o.
Outra coisa interessante do sistema de pontos corridos � que ele cria v�rios vencedores, ao inv�s de um s�. A disputa principal, � claro, � pelo t�tulo de campe�o. Mas h� uma outra competi��o pela classifica��o para outros torneios. Do 2� ao 5� lugar, vale vaga para a Ta�a Libertadores da
Am�rica, o torneio mais importante continente. At� a 10� coloca��o, acho, classifica-se para outra copa, a Sul-Americana. E l� em baixo, na tabela, h� a disputa para n�o cair para a Segunda Divis�o. E na Segunda Divis�o, a disputa � para subir para a Primeira. E para os que ficaram no meio, sem ganhar nada, fica o desafio de uma melhor prepara��o para o ano que vem. Ou seja, valoriza-se o dia a dia, o trabalho, o esfor�o de cada partida, numa palavra, o cotidiano.
Ao inv�s de tirar o t�tulo da cartola, no �ltimo jogo, privilegia-se a compet�ncia de quem trabalhou ao longo de todo o campeonato.


Quem n�o acompanha muito o futebol brasileiro deve estar pensando; mas qual � a novidade nisso a�? Inventaram a roda? Esse sistema n�o � o �bvio? �, mas n�o era. Desde que o campeonato existe j� vimos de tudo, toda sorte de f�rmulas, sistemas e esquemas que possibilitavam que o campe�o, por exemplo, tivesse menos pontos que um outro time. O melhor acabava sendo eliminado num torneio extra chamado apropriadamente de mata-mata.
O engra�ado � que esses sistemas malucos tem muitos defensores, inclusive a poderosa Televis�o que � quem d� as cartas atrav�s do poder econ�mico, comprando os direitos de transmiss�o dos jogos.
Por a� a gente come�a a entender. A Televis�o, por sua natureza, detesta o cotidiano. Televis�o precisa do inusitado, do surpreendente, do espetacular. O dia a dia n�o d� ibope. Vejam, por exemplo, as novelas. Como admiro os escritores de novela! Eles conseguem produzir seis meses de uma hist�ria em cap�tulos em que todos eles, todos, sem exce��o, terminam com um suspense no ar para garantir a audi�ncia do dia seguinte.
Do lado de c�, na poltrona, o telespectador assiste a tudo, fisgado pelas emo��es, alienado, muitas vezes imbecilizado, sem considerar que a sua vida n�o � assim, a vida de ningu�m � assim. Vivemos no cotidiano a experi�ncia da rotina, da simplicidade, do ordin�rio. E � a� que somos chamados a descobrir o novo, o permanente, o especial, o extraordin�rio.
Posso estar exagerando, mas o recado que passamos aos nossos jovens, via �dolos esportivos, � muito claro. Se colocarmos como modelo o Rom�rio (de hoje), teremos como valores, a esperteza, a artimanha, a surpresa, o inesperado. Se colocarmos no trono o Alex, estaremos valorizando o trabalho, o suor, a aplica��o, sem abrirmos m�o da arte e do talento.
Significativamente o Comit� Ol�mpico Brasileiro escolheu recentemente como os melhores atletas do ano de 2003 o tenista Fernando Meligeni e a ginasta Daiane do Santos. Dois exemplos de esfor�o cotidiano.
Diante desses fatos t�o banais na nossa m�dia esportiva, sou chamado a Ter, como crist�o, aquele �olhar diferente�. Penso que h� na narrativa da vida de Jesus, um evangelho oculto, an�nimo, que parece nos dizer: o extraordin�rio � preparado, � gestado na simplicidade. As informa��es sobre a vida de Jesus tem lacunas imensas. N�o sabemos como foi sua inf�ncia, sua adolesc�ncia e juventude, como chegou � idade adulta. Tudo ficou l�, escondido, para revelar-se depois, nas suas palavras, nos seus gestos, na sua vida p�blica. Ele �gastou� a maior parte do tempo da Encarna��o �trabalhando em sil�ncio�... no cotidiano...
Mas n�s, muitas vezes, corremos atr�s do espet�culo, precisamos desesperadamente dos �ndices de audi�ncia. Queremos o brilho dos milagres diante dos holofotes, queremos ser celebridades. Por isso os cartolas do futebol n�o conseguem aceitar um torneio que, ao final, d� o pr�mio ao cotidiano, ao time que ao longo de um ano inteiro buscou aperfei�oar-se nos treinos, investiu em cada jogo, no esfor�o do dia a dia, aprendendo com os trope�os, reconhecendo seus limites, investindo e aprimorando suas qualidades, na conquista passo a passo, de alegrias saboreadas uma a uma.
N�o. Para os nossos �dirigentes� o cotidiano pode ser superado, ao final, por um golpe de sorte (ou outros tipos de golpe...), por algu�m que foi mais �esperto�, descobriu um atalho, um momento de brilho, um flash! Acho que se Santo In�cio de Loyola fosse consultado sobre o assunto, optaria pelos pontos corridos (e acho que seria cruzeirense tamb�m...)
Ele nos convidaria a olhar o ano que passou e somar os pontos. Ir�amos perceber que entre vit�rias, derrotas, empates, houve, sobretudo, a vida! Vivemos! Experimentamos sabores que vieram nos acontecimentos, nas pessoas, no tempo que passa e nos convida a ir junto, rumo � novidade de cada dia.
Fim de ano, come�o de ano. Hora de somar os pontos corridos, os fatos ocorridos, as experi�ncias colhidas, as pessoas acolhidas, a vida que nos foi dada.
Valorizar o cotidiano, descobrir o mist�rio que mora nas coisas, sentir e saborear intimamente os dias que recebemos de presente. Os vividos e os que vir�o.
Ser e fazer como os outros, mas diferente. A come�ar por perceber que n�o basta desejar um feliz Ano Novo. Al�m de desejado, ele est� a� para ser constru�do. No cotidiano.
Por pontos corridos...
Eduardo Machado
15/12/2003

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